domingo, 17 de abril de 2016

[Opinião] É possível dissociar o RPG e os parâmetros pessoais e sociais?

Vejo bastante gente, inclusive alguns formadores de opinião com muitos seguidores, defendendo que RPG é apenas um passatempo, e portanto, deve estar dissociado de causas sociais e de interesses pessoais. Mas eu discordo completamente dessa opinião, e no artigo abaixo, irei defender meu ponto de vista, baseado em experiências pessoais. Ao final do artigo, entretanto, incluo uma série de trabalhos e estudos que reforçam que o RPG possui essa ligação de forma intrínseca.




O RPG é um jogo social, que visa a diversão em grupo. Consiste em reunir pessoas, de amigos a meros desconhecidos, em torno do objetivo comum de contar uma história juntos, onde os jogadores são os protagonistas dessa história. Não importa o perfil e as preferências das pessoas nesse grupo. Alguns preferem regras rígidas, e a história apenas como pano de fundo para a ação. Outros preferem a história e não ligam para ação e regras. Mas independente do sistema, do cenário, e das expectativas e objetivos do grupo, a história a ser contada está sempre presente.

O desenvolvimento da cultura humana, inclusive, dependeu da habilidade de contar histórias, de se comunicar. Só foi possível repassar conhecimentos adquiridos quando os nossos antecessores desenvolveram a comunicação. Desde antes do desenvolvimento da escrita, o "contar histórias" passou a ser a principal forma de educar e ensinar os mais jovens ou menos experientes.


Com o passar do tempo, a espécie que mais se refinou na arte da comunicação passou a ser a dominante, e o Homo sapiens passou a refinar ainda mais essa comunicação. Surgiram lendas, crenças, histórias fantásticas sobre coisas que transcendiam o mundano. E essas histórias foram desenvolvendo ideais e conceitos culturais. Todas as histórias fantásticas, além de histórias mundanas passadas de boca em boca, ensinavam algo. Contar histórias é a atividade humana mais antiga inserida dentro de um contexto social e de formação de identidade pessoal.


Quando criamos um personagem de RPG nós inconscientemente resgatamos essa arte de contar histórias. Cada personagem ensina algo. É muito comum, inclusive, que pessoas coloquem um pouco de si em seus personagens, rompendo a barreira entre a ficção e a realidade de uma forma muito pessoal. E não é raro que as pessoas sequer percebam que estão fazendo isso.

O RPG indiscutivelmente é um jogo de contar histórias. Dessa forma, ele não pode ser descontextualizado das bases sociais e pessoais da atividade que lhe deu origem. É claro que quando jogamos, queremos nos divertir. Mas o que aconteceria se milênios de histórias contadas tivesse causado a seleção de características que fazem com que a aprendizagem por meio de histórias contadas fosse facilitada a ponto de se tornar algo inconsciente e natural? Estaríamos sendo influenciados pelo RPG de uma forma até mesmo subliminar. É claro que essa seleção evolutiva é mera especulação. Não sabemos ainda quantos dos nossos comportamentos possuem um fundo genético e quantos são meramente resultado de aprendizado. O fato é que eu acredito que pessoas que tiveram mais contato com as histórias infantis que tinham uma "moral", que visavam ensinar algum tipo de valor, são mais propensas a gostarem de RPG. Dessa forma, tendo ou não um fundo genético, haveria uma tendência muito forte a, inconscientemente, relacionar os acontecimentos do RPG a experiências pessoais. Fazer seus jogos e seus personagens carregarem em si uma "moral da história".

Todas aquelas coisas que acontecem no RPG e teoricamente são inofensivas porque "é só um jogo", seriam tão inofensivas assim? Será que a violência física e emocional contra personagens, a injustiça, os traumas, não teriam alguma influência sobre os jogadores? É claro que uma pessoa mentalmente estável saberá diferenciar os acontecimentos de jogo e a vida real, mas será que não sobra nada lá no fundo? Será que não fica uma "moral da história" quando alguma coisa acontece no RPG? E mais importante, será que não estaríamos atingindo gatilhos em pessoas mais sensíveis e trazendo à tona comportamentos negativos nas pessoas menos estáveis ou maduras? No passado, tive contato com vários jogadores de RPG que pareciam estar sempre interpretando seu "vampiro malvado". Elas levavam para a sua vida comportamentos que deveriam ter ficado no personagem. Elas se achavam superiores ao machucar emocionalmente pessoas em sua volta, uma vez que dentro do jogo, para o personagem malvadão, esse comportamento era aceitável e até mesmo incentivado. Elas se sentiam bem passando a perna nos outros. Elas tinham o mesmo ar de superioridade dos seus personagens, se sentindo no direito de serem babacas. Essas pessoas não me faziam bem.

Há quem defenda a violência e o preconceito dentro do cenário de jogo como forma de tornar esse cenário realista. Infelizmente, na maioria dos casos o que acontece na prática nada mais é do que a banalização dessas coisas. Nas histórias tradicionais dedicadas à transmissão de conhecimentos e valores, o herói (substituído pelo personagem de jogador no RPG) é aquele que consegue enxergar além das injustiças do mundo e se torna capaz de fazer alguma coisa contra essas injustiças, seja com ganhos pessoais ou sociais.  Nesse sentido, o RPG é uma importante ferramenta de percepção sobre o que é justo ou injusto.


Uma outra característica que o RPG e o "contar histórias" proporciona, mas que no RPG é muito mais imersivo, é a capacidade de se colocar no lugar do outro. O desenvolvimento da empatia essencial para as relações humanas pode ser facilitado pelo jogo. Colocar a pessoa numa situação imersiva de simulação de um outro ponto de vista, de outras ideias, de outras crenças, não é ao mesmo tempo pessoal e social? É possível dizer que essa experiência não vai causar nenhuma alteração na forma como você enxerga o mundo e as outras pessoas?


Empatia é uma coisa que está faltando no mundo, e eu acredito que é por isso que existem tantas injustiças e tantas pessoas machucando o outro sem nem notarem, ou pior, sem nem se importarem. Será que é coincidência que muitas vezes a pessoa com pouca empatia pelo outro é a mesma que cria personagens anti-sociais nos jogos de RPG? Pois é, essa é uma coisa que eu observei em todos esses anos jogando e narrando RPG. Será que não seria válido, como ferramenta de desenvolvimento de empatia no indivíduo, cobrar desse jogador que crie personagens que se importem com os outros?

O jogo de RPG é o momento perfeito de simular uma personalidade diferente da nossa. Se somos introspectivos, o desafio de criar um personagem comunicativo e cara de pau muitas vezes é enorme, mas a recompensa de ver aquele personagem funcionando bem dentro do jogo compensa todas as dificuldades. Da mesma forma, quando se joga com um personagem malvado, esse é o momento não de vibrar com "oh como eu sou malvado", mas de entender como a mente do vilão é deturpada. A ideia ao se jogar com um vilão, e que os mestres raramente entendem, é que você tem uma oportunidade de mostrar o sofrimento causado por aquele personagem em suas vítimas. Quando em uma história tradicional o protagonista é um vilão, normalmente o objetivo da história é mostrar o seu processo de desenvolvimento de empatia pelo outro, a sua redenção e posterior transformação em herói. Por que não levar isso para o RPG? Olha só que oportunidade de uma história profunda e com uma "moral" estamos perdendo...


Outra questão social muito mal explorada nos jogos de RPG é a do preconceito. Normalmente, quando um jogador escolhe uma minoria, que dentro do cenário seja alvo de preconceitos, é porque lá no fundo ele deseja experimentar se colocar na pele de alguém que sofre preconceito. E é raro que o personagem passe por situações de preconceito durante o jogo. De repente ao se tornar um personagem de jogador parece que automaticamente o mundo fica mais tolerante. Mas o mundo não é assim, e deixar de lidar com a questão do preconceito quando o próprio jogador inseriu isso no jogo é deixar de aprofundar um aspecto que o jogador esperava aprofundar. Lembremos que nas histórias clássicas onde um protagonista é alvo de preconceito, ele precisa penar muito para que as pessoas passem a respeitá-lo e tratá-lo como igual. Normalmente apenas os amigos mais próximos (no caso do RPG, os outros personagens de jogador) o consideram um igual, e o resto do mundo é cruel com ele. A cruzada pessoal dele é sobre igualdade, mas o que sobra se nem os vilões do cenário o tratarem mal por serem uma minoria? Teremos um jogador frustrado, insatisfeito com o personagem, mas que muitas vezes nem se deu conta do motivo da sua insatisfação.



Enfim, o objetivo desse texto não é de causar nenhum tipo de revolução nas mesas. Não é de julgar sobre certo e errado. Pelo contrário, eu quero reforçar aqui que sim, o objetivo principal do RPG é SE DIVERTIR com um grupo de pessoas. Mas gostaria de convidar todos os mestres e jogadores a refletir sobre essa fonte de diversão. A pensar nela como uma diversão social, inserida dentro de contextos sociais mais ou menos realistas e profundos, mas nunca dissociada desses contextos. E convidar todo mundo a inserir uma "moral da história" dentro de seus jogos, e objetivos pessoais com componente social dentro de seus personagens. Essa moral da história pode variar em intensidade, e os objetivos com componente social podem ser tão diversos quanto "quero ficar rico para que meus irmãos pequenos não precisem mais trabalhar" ou "meu objetivo é casar e ter uma família", ou mesmo "vou me tornar rei/imperador para acabar com as injustiças que esse povo está passando", para um heroi, ou mesmo, para vilões, "eles não podem sobreviver sem mim, por isso preciso dominá-los", um objetivo que numa crônica de redenção pode facilmente virar um "eu vou protegê-los".


O que quero reforçar é que estamos jogando invariavelmente um jogo social, e disso você não pode escapar quando joga RPG. Incluir temas sociais, mais leves ou mais profundos, no seu jogo, não vai atrapalhar a diversão. Pelo contrário, irá aprofundá-la, torná-la mais imersiva, e com mais significado para os jogadores. As mesas mais memoráveis são aquelas que tocam profundamente os jogadores de deixam neles uma marca positiva, independente do quanto os seus personagens sofreram ou deixaram de sofrer. E para tocar um jogador profundamente, é necessário pensar no jogo de um ponto de vista pessoal. E isso só é possível com um envolvimento profundo do personagem com temas sociais. 





Algumas coisas relacionadas para ler com calma:




2 comentários:

  1. Parabéns pelas excelentes reflexões, muitas já apresentadas em distintas fontes, enumeradas ao término deste texto. Para além de tornar palatáveis muitas discussões já tratadas teoricamente (seu texto para mim funciona como divulgação científica, uma vez que acompanho a discussão sobre o assunto como objeto de pesquisa). Acredito que tais apontamentos sejam fundamentais para a reflexão sobre as ações que permeiam o contrato social em todas as mesas de jogos. Longe de contrapor a meta (divertir a todos), os jogos narrativos podem associar o ato de se divertir com o diálogo claro com as demandas sociais prementes. E aí, tudo que apresentou (empatia, questões relacionadas ao preconceito, etc.) entra perfeitamente.

    [Jorge Valpaços]

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    1. Obrigada.

      Se você tiver mais algum link que considere importante, pode postar que eu acrescento á listagem do final do artigo.

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