quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

O que não é RPG estilo Anime? E como garantir a segurança nas mesas de jogo?


No artigo anterior, eu defini o que seria uma mesa de RPG “estilo anime” e o que isso tem a ver com mesas seguras. Nesse artigo, seguindo a sugestão da leitora Ana Carolina Gomes, irei abordar problemas encontrados em alguns títulos de animes e como isso acabaria interferindo de forma negativa caso “vazasse” para a mesa de jogo.


Gate: Jieitai Kanochi nite, Kaku Tatakaeri


Para quem, como eu, cresceu nos anos 80 e 90, e viu tanta coisa horrível ser tratada como se fosse normal, a ponto de passar pela lavagem cerebral da mídia de realmente achar que era ok que crianças cantassem uma música com conteúdo sexual ou apresentadoras de programa infantil dançassem seminuas, para que o público adulto passasse a consumir essas coisas, muita coisa problemática acaba passando bem batida quando vemos um anime ou lemos um mangá. 

Yu Yu Hakusho e comportamentos considerados
aceitáveis no século XX
Os primeiros animes que chegaram na televisão brasileira, e que hoje são considerados por muitos como clássicos e exemplo do que é um anime são fruto dessa época. E infelizmente muitos esquecem completamente do enredo de um anime, lembrando-se da passada de mão que o protagonista deu na personagem feminina que ele gostava sem o consentimento dela, que a mãe perfeita do personagem era “linda, recatada e do lar”, que as protagonistas femininas buscavam acima de tudo o seu príncipe encantado, que a mocinha é para ser protegida, que é normal achar fulano diferente porque ele não é japonês, e tantas outras coisas. E muitos desses aspectos negativos que permeavam a maioria das produções mais antigas acaba vazando para a mesa de jogo “estilo anime”, como se fossem aspectos do jogo estilo anime.

Uma verdade cruel para você que pensa assim: não, eles não são. Essas coisas são reflexos sombrios de uma cultura repressiva, que busca nos mangás e animes a fuga de uma realidade dura e cruel. Japoneses estão sempre sob tensão, e buscam extravasar essa tensão consumindo essas obras. Eu não posso sair por aí batendo nas pessoas, mas me sinto “vingada” quando vejo um personagem fictício fazendo isso e aliviada quando ele tem sucesso e o mal é derrotado, mesmo com tanta coisa ruim que ele fez no meio do caminho. Essas obras mais pesadas geram um certo alívio, uma verdadeira catarse. Pessoas saudáveis que gostam de ver violência ou outros temas problemáticos nos animes sabem que aquilo é apenas uma história, e não aplicam isso na sua vida real, porque, bem, pessoas saudáveis sabem que isso é errado. Não devia ser nem necessário escrever sobre isso.

Mas mesmo isso está mudando. Não é mais todo mundo que se sente ok vendo violência e abuso da parte de um protagonista, de um herói. Cada vez mais as histórias recentes tem refletido essa mudança nos padrões de certo e errado e se adequado à sensibilidade do público. Protagonistas machistas, violentos ou abusadores muitas vezes tem consciência de suas falhas e possuem dilemas morais, procurando melhorar.



As mulheres em Ushio to Tora reproduzem estereótipos
antiquados que não tem mais lugar no século XXI
Muitas das obras recentes onde esses problemas são facilmente observados são remakes ou adaptações de histórias mais antigas. Ushio to Tora é um bom exemplo. É um excelente shonen de 2015, mas é remake de OVAS que foram ao ar entre 1992 e 1993. Todas as personagens femininas são apoio para o protagonista. Por mais que elas demonstrem, cada uma delas, força e determinação, isso é apresentado como força feminina, decorrente do amor maternal ou romântico, reduzindo elas ao papel de apoio ao protagonista. A postura delas poderia ter mudado nesse remake, mas os produtores preferiram se manter mais fiéis à obra original. Pelo menos Ushio, o protagonista, é um cara legal.




Akagami No Shirayuki-hime
Para contrabalancear, vamos pular para um shoujo mais recente, mas nem tanto assim. Akagami No Shirayuki-hime foi adaptado para anime em 2015, mas o mangá começou a ser escrito em 2006. É um período, para os animes e mangás, de transição da mulher frágil e submissa para a forte, dona de seu próprio destino. Shirayuki é uma herborista, uma garota simples e independente que vive em um certo reino. Um belo dia o príncipe local, encantado pelos seus longos cabelos ruivos, ordena que ela se torne sua concubina. Ela podia se resignar e aceitar o papel que a sociedade espera dela, afinal é uma honra ser concubina do príncipe. Mas ela corta os cabelos, desafia ele e foge para um reino vizinho. Shirayuki quer construir o seu próprio destino. Lá, ela batalha para se aperfeiçoar como herborista e se recusa a aceitar favorecimento de terceiros. Quer trilhar o seu caminho e conseguir as coisas pelo seu próprio mérito.








Shuumatsu no Izetta
Em Shuumatsu no Izetta, Izetta é uma bruxa. A última bruxa ainda viva. Quando o reino onde ela cresceu se vê ameaçado por invasores, ela escolhe, por lealdade à sua princesa e ao reino, defendê-lo. Izetta é uma bruxa que voa num rifle, definindo os rumos de uma guerra em um mundo parecido com a Terra da década de 1940. Ninguém acha certo Izetta lutar. A própria Princesa Finé vê Izetta como sua querida amiga de infância e não quer perdê-la. Mas essas duas mulheres decidem que suas responsabilidades pesam mais do que aquilo que elas desejam, e por fim Finé acaba aceitando que Izetta corra riscos para que possa existir um mundo melhor. Nesse anime, não são mostradas diferenças entre homens e mulheres no que diz respeito aos papéis de poder ou capacidade combativa. Mas o preconceito quanto a Finé ser uma mulher em papel de liderança existe, vindo principalmente dos antagonistas. Em várias obras recentes o machismo passou a ocupar o espaço que lhe diz respeito, ou seja, o machista é um dos caras maus. Faz sentido você criar para uma mesa de jogo, um personagem de jogador que seja machista?








Akagami No Shirayuki-hime
E o que falar da romantização do abuso sexual em mangás e animes? Novamente, isso era muito comum nos animes do século XX, e tem se tornado mais raro nos do século XXI. É claro, eu não estou falando aqui de animes que exploram especificamente esses temas, mas do fanservice gratuito que de repente aparece num anime nada a ver apenas para aumentar a audiência. Cada vez mais os protagonistas não veem o parceiro ou parceira como propriedade, e sim como alguém cujo corpo e sentimentos devem ser respeitados.

Por que a pornografia e sexualização nos animes fazem tanto sucesso? Novamente, a resposta está no povo japonês. Eles estão restritos a normas morais muito rígidas e muita cobrança para que tenham comportamentos impecáveis em seu dia a dia. Assistir e ler pornografia é uma forma saudável de extravasar. A fantasia faz bem. Vou falar um pouco sobre uma obra Yaoi agora, mas para fazer um paralelo com o abuso sexual visto como natural em vários animes. Se não se sentir confortável com isso, fique à vontade para pular para o parágrafo que começa com “O que aconteceria”, abaixo.

Nos mangás e animes Yaoi mais antigos, era muito comum a romantização do abuso sexual. Parecia ok que alguém com interesse romântico simplesmente perdesse o controle e em algum momento atacasse o outro, como se fosse um animal no cio incapaz de se controlar. E que o outro simplesmente ficasse apaixonado após o abuso sofrido, sem que isso deixasse sequelas psicológicas ou traumas, ou causasse remorso no abusador. Aos poucos isso tem mudado. Koisuru Boukun é um mangá que começou a ser escrito em 2004 e teve o começo adaptado para anime. Nele, o protagonista é apaixonado pelo seu sempai da faculdade, que é homofóbico mas sabe que ele é gay e que gosta dele, mas simplesmente ignorou isso. Em certo momento, ele acaba se aproveitando de uma situação que coloca o sempai em uma condição de fragilidade, e o estupra. O protagonista sabe que é errado, sabe que não devia, mas não para. E se arrepende depois. O enredo do mangá passa a lidar com isso, com esse arrependimento. Mesmo assim, ainda há uma certa romantização do estupro, como se a culpa do mesmo fosse do corpo, dos hormônios. Como se não houvesse escolha senão seguir seus instintos naquele momento. A autora claramente fez um esforço para mostrar o quanto o estupro é terrível, diferenciando a obra de várias predecessoras onde após um estupro estava tudo bem. Mas ainda tem bastante falhas.

O que aconteceria se, numa mesa de jogo, seu personagem (homem ou mulher) fosse estuprado por outro personagem de jogador, sob a desculpa de que ele não foi capaz de conter seus instintos? Seu personagem seria capaz de se afeiçoar ao abusador? Seria capaz de continuar próximo dele?



Cheer Danshi
Outro problema comum é o dos estereótipos. Muitas vezes o personagem menos atraente, o de piores notas na escola, o homossexual, aquele que é uma pilha de músculos, se resumem a isso e a um papel secundário onde tudo o que eles passam parece ser culpa daquilo que eles são. Isso também está mudando nos animes mais recentes. Em Cheer Danshi, um shonen de esportes sobre uma equipe masculina de animadores de torcida, cada garoto tem seu próprio motivo para ter entrado na equipe. Tem um personagem acima do peso. E ele não entrou na equipe para emagrecer e melhorar a aparência, nem para ficar popular, e sim porque estava preocupado com o seu estilo de vida e queria tentar fazer algo mais saudável. Mais tarde é revelado que o garoto é o único da equipe que tem uma namorada. Ela é muito bonita e eles se amam.

Nuriko, de Fushigi Yuugi, foi a primeira personagem transgênero a ser retratada com respeito em um anime. O mangá estreou em 1992 e o anime em 1995. Apesar de ter sido um marco, ainda haviam alguns problemas. Ainda hoje é difícil ver personagens transgênero sendo retratados de forma natural e respeitosa em animes. Tokyo Godfathers, de 2003, é um dos poucos onde isso é visto. A personagem Hana, uma mulher trans moradora de rua, foi caracterizada com muita sensibilidade. 

Tokyo Godfathers







Gate: Jieitai Kanochi nite, Kaku Tatakaeri
A forma como personagens nerds e otakus aparece nos animes tem mudado muito recentemente. Em Gate: Jieitai Kanochi nite, Kaku Tatakaeri o protagonista é um adulto de 33 anos que admite que trabalha para poder sustentar o seu passatempo. Mas logo nas primeiras cenas, percebemos que ele está muito longe do estereótipo de nerd. Aliás esse anime, apesar do fanservice, quebra bastante estereótipos.








Kyoukai no Katana
E quanto ao racismo e da xenofobia nessas obras? Os japoneses sempre tiveram muito medo de estrangeiros, vistos como aqueles que acabariam com seu país e sua cultura. Isso vazava muito claramente nos animes do século XX. Sempre que um personagem era meio japonês, meio qualquer outra coisa (estrangeiro, youkai, demônio, simbionte com um alienígena, etc.) ele era visto com enorme preconceito. E olha, isso é comum até hoje! O meio-alguma-coisa tem de lidar com suas diferenças e provar para o mundo que ele não é ruim como a sua contraparte não japonesa é. O que tem mudado é que nos animes mais antigos a força da “metade maligna” geralmente tomava o personagem com muita clareza e o transformava, e dava muito trabalho para reverter a situação, quando em muitos animes recentes, mesmo quando é “tomado por sua parte maligna” os personagens tem conseguido recobrar ou manter a sua consciência e os seus valores. Mas a sua metade maligna continua lá para mostrar a ele que ele nunca será tão puro quanto os demais, e ele sempre sofrerá preconceito quanto a isso. Os amigos do protagonista entendem que esse preconceito é errado, mas a maioria das pessoas não. Faz sentido você jogar com um personagem que seja racista ou xenofóbico, esteja confortável com isso e não deseje mudar?

Além dos exemplos citados, existem outros. Anime é só o nome dado à animação japonesa, como explicado no artigo anterior. E como forma, há conteúdos bons e ruins. É necessário ter critério e filtrar os ruins ao se fazer uma extrapolação para o jogo de RPG.

Animes e mangás não são histórias interativas, enquanto o RPG é. Por mais que estejamos interpretando um personagem em mesa de jogo, a maioria das pessoas acaba colocando muito de si no personagem. A imersão é uma via de mão dupla. Ao interpretar um personagem, você se torna ele. Ele experimenta coisas que você gostaria de experimentar, e isso torna o jogo divertido. Então, tudo o que acontece com ele, sejam coisas boas ou ruins, acaba afetando você também, em menor ou maior grau. Se o seu personagem sofre um dano físico, você não sentirá dor. Mas todas as alegrias do personagem acabam sendo alegrias suas também, não é? Quantas vezes você não ficou feliz ao ver seu personagem se dando bem? Isso é válido para as experiências negativas e traumas também! Quando seu personagem sofre uma violência psicológica, quando ele sofre um trauma, isso passa para você. É natural se abalar com isso.

É por isso que, como dito no artigo anterior, temas sensíveis devem ser abordados com bastante cautela. Os jogadores precisam estar psicologicamente preparados para o que vai acontecer aos seus personagens.

As violências causadas por NPCs, quando os jogadores estiverem avisados, estão dentro do esperado. Logo, está tudo bem que elas ocorram, se os jogadores estiverem preparados para isso. Já as violências causadas por outros personagens de jogador fogem completamente da barreira de segurança emocional que o jogador criou. Se eu crio um personagem de jogador típico de anime shonen dos anos 90, machista, arrogante, racista, que gosta de apalpar mulheres, estarei agredindo os outros jogadores ao interpretar esse babaca e usá-lo para causar violências aos personagens deles.

Re: Zero - Kara Hajimeru Isekai Seikatsu

Não estou dizendo aqui para criar um personagem perfeitinho. Bons personagens tem defeitos, e muitas vezes é interessante que um aspecto negativo problemático esteja presente num personagem inicialmente, se o objetivo do jogador for lidar com isso na mesa de jogo e transformá-lo numa pessoa melhor em contato com os demais. Mas para que isso dê certo e a mesa seja um ambiente seguro, são necessárias duas coisas:

1. Total concordância de todos os jogadores e do mestre para que tal aspecto negativo de seu personagem seja explorado e trabalhado. É necessário que todos os personagens da mesa sejam criados de modo a permitir essa interação e aprendizado, então isso precisa ser discutido antes mesmo dos demais criarem os seus personagens.

2. Real comprometimento em evoluir o personagem e livrá-lo desses aspectos. Isso não pode ser deixado para depois. O arrependimento, o saber que você é horrível, o esforço para não ser um babaca, o comprometimento na mudança, devem permear todas as ações do personagem desde o início da crônica. Por mais que ele erre, ele já deve saber de antemão que isso é errado, e ir agindo para consertar as coisas.



Lembre-se: Ninguém te deu permissão por omissão para fazer um personagem problemático ou para criar um jogo abusivo. E RPG “estilo anime” não é um jogo onde você pega aspectos negativos vistos em alguns animes e adota como coisa natural. Mesmo quando adaptar um anime ou mangá onde essas coisas nocivas são naturais, pense como alguém do século XXI. Um cenário permeado de coisas nocivas pode ser uma experiência positiva, se o mestre souber transformá-lo numa oportunidade de mostrar o quanto isso é problemático e quando os personagens de jogador estiverem comprometidos, por exemplo, a lutar contra essas coisas, a serem os herois capazes de influenciar de forma positiva o seu mundo de aventuras.  

3 comentários:

  1. Muito bom o texto, mas tem uma ressalva que eu gostaria de fazer: não vejo porque você obrigatoriamente teria que ter uma batalha pessoal pra tornar o personagem melhor. Jogando RPG você não está preso a heróis e se todos na mesa se sentirem confortáveis e tiverem maturidade pra entender que o que personagem faz é injustificável não vejo problema em ter um desses problemas graves e se sentir satisfeito com isso.

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  2. eu acho que depende, se eu fizer uma mesa medieval e o personagem for um inquisidor da igreja em busca de hereges, ok. Ele vai interpretar um inquisidor do século 13 em busca de hereges, acho que o RPG pode ser usado para várias coisas, tanto contar a história, quanto modificá-la ou usa-la pra quebrar paradigmas. Cabe ao grupo de jogo como um todo discutir como vão retratar certas coisas.

    Por exemplo: Numa campanha pirata medieval onde todo mundo é bonzinho e respeita as leis pode se tornar inverossímil. (isso acontece em animes, mas depende do grupo querer ser mais "realista" com os piratas)

    O objetivo principal do RPG é a diversão, e como você mesmo diz, muitas vezes as pessoas saudáveis usam aquele espaço pra extravasar, e no nosso período histórico existe muita gente machista (sim, inclusive no meio nerd) que pode querer extravasar essa caracteristica através de um personagem na mesa de jogo e não em meios sociais reais.

    Cabe ao grupo colocar limites no que pode ou não ser feito e se a proposta da mesa e do personagem são compatíveis entre si, afinal numa mesa que busca retratar a história e a realidade muitas coisas hoje tidas como erradas tornam-se comuns na mesa de jogo.

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  3. enfim, só pra complementar eu sou contra a banalização do "trigger warning" se a cada açao que possa incomodar alguém eu tiver que pedir permissão eu jogarei pisando em ovos, já que existem os mais infinitos incômodos na sociedade.

    Nas minhas mesas mesmo eu só uso trigger warning com violencia explicita, ações de cunho moral repulsivo (E não qualquer coisa, repulsivo mesmo) e violência sexual. De resto, acho de boa você poder fazer um fiu fiu pra garçonete npc.

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