domingo, 30 de agosto de 2020

O Mestre não é uma posição de poder

 Ser Mestre não é ter uma posição de poder, nem é algo especial. O Mestre, independente do nome que receba nos diferentes jogos, é apenas um jogador com uma função diferente da dos demais. Saiba porque e desmistifique o mito do “Mestre de Jogo” lendo o restante do texto.




Salve, pessoas! Como vão? Tudo bem? Há quanto tempo né? Eu mesma nem estou acreditando que novamente estou postando no Tralhas depois de abandonar esse blog por tanto tempo. Pois é né, o mundo gira, as coisas mudam, mas eu fui sumonada de volta para cá porque recentemente tivemos de reinventar a forma como jogamos RPG, migrando todo o presencial para o virtual. Isso dá o maior medo, não é mesmo?


E com toda a instabilidade social e econômica que estamos vivendo, um fenômenos que já havia aparecido se tornou mais evidente: o de pessoas criando cursos (pagos) que supostamente ensinam como ser um Mestre de RPG.


Como assim curso? Pois é né? Os próprios módulos básicos dos jogos ensinam como ser o Mestre, ou seja lá qual for o nome que aquele jogo dá para essa posição. Mas as pessoas estão tão inseguras que de repente sentiram a necessidade de fazer algum curso.


Veja só como foi no meu caso. Como eu me tornei Narradora de RPG. 


Há muito tempo atrás numa galáxia distante, havia apenas internet discada ou a cabo de baixíssima qualidade. Era muito difícil encontrar pessoas para jogar RPG, e essa alga marinha morria de vontade de jogar. Eu já tinha lido o Vampiro A Máscara 2ª Edição e só. E obviamente eu não me achava apta nem para jogar, imagina então narrar!


Um certo diz, um conhecido de um fórum de anime me mandou um ICQ perguntando: ah, você gosta de RPG né? Tenho um amigo que faz faculdade no interior que vai vir pra cá no fim de semana prolongado e vamos jogar uma mesa One Shot. Mas não é vampiro, viu? É um medieval de baixa magia, ao estilo Rei Arthur. Você quer jogar?


E eu, morrendo de medo disse: ah, eu não sei jogar. Mas posso assistir? 


Ele perguntou para o amigo se podia, e com a autorização do Mestre, eu fui ao jogo bisbilhotar. 


Nota importante aqui: o jogo era no Centro Cultural São Paulo, local público e seguro. Crianças, nunca vão à casa de desconhecidos para jogar RPG, sempre locais públicos, ok? 


Cheguei lá e o amigo sacana veio com “ah, mas ciclano que disse que vinha não vai poder vir. O personagem que eu fiz para ele era importante no jogo. Você vai jogar com ele.”


Ah, mas…


Não tem mas. Na minha mesa ninguém fica olhando. Pode deixar que eu te ajudo, não tem problema não conhecer o jogo. Senta aqui do meu lado e qualquer coisa me pergunta. 


Meu, ele foi super atencioso e me acolheu maravilhosamente. Todo o meu medo dissipou e começamos a jogar. Eu, novata total, de 1,53m de altura, jogando com um homem bruto, bárbaro de quase 1,90m, uma pilha de músculos e um machado, me senti bem porque aquele mestre foi uma pessoa maravilhosa comigo, me soltei e o jogo correu maravilhosamente.


Ao final ele me perguntou: tem certeza que você nunca jogou RPG antes? E eu, timidamente: “bom, eu só li o pdf de Vampiro, mas nunca joguei mesmo”. E ele: “pois você jogou muito melhor que muito jogador experiente que eu já mestrei”. 


Vocês conseguem notar como isso foi importante? O mestre em questão era um ótimo mestre. Acolhedor, não competia com os jogadores, atencioso, em momento algum fez nenhuma ação que pudesse dar a entender que ELE estivesse querendo sacanear os jogadores e seus personagens. Todo o tempo o inimigo permaneceu o inimigo, o mestre permaneceu o mestre: um jogador como todos os outros, mas com um papel diferente e um fardo maior para carregar.


Esse primeiro contato foi essencial para o que viria depois. Ainda sem grupo, porque esse mestre voltou para o interior e nenhuma das pessoas ali mestrava, comecei a comprar e ler outros livros de RPG. Inicialmente da linha Vampiro a Máscara que era um cenário que tinha me fascinado. Eu imaginava dia após dia como seria jogar aquele jogo. 


Até que meses depois um novo convite veio, dessa vez para jogar Vampiro na área comum do prédio de um outro conhecido. Todas as pessoas que jogariam eram pessoas com quem eu já tinha contato em fórum de anime e já tinha saído em encontrinhos na Liberdade algumas vezes, então julguei seguro para mim ir nesse jogo no prédio de um deles.


Essa segunda experiência foi horrível. O mestre era machista e era do tipo “eu mando aqui, vocês obedecem, eu vou ferrar os personagens de vocês”. Ele achava que ser Narrador era realmente aquilo, e essa mesa foi traumatizante. Juro que se eu não tivesse tido aquela primeira experiência, e a certeza de que o clima de jogo que esse narrador proporcionou estava equivocado, eu jamais voltaria a jogar RPG. 


Naquele momento eu falei: Chega, Vampiro não é essa b@sta, esse cara e os amigos dele estão com uma ideia muito errada sobre esse jogo. Eles leram mesmo o livro? Não é possível, qual o problema deles?


E foi aí que eu, Graci, tendo jogado só 2 vezes, uma mesa boa e uma muito ruim, virei narradora de RPG. 


Ao longo desses anos todos, eu procurei ler vários livros com sistemas e cenários diferentes, aprender de tudo, estudar a lógica dos sistemas. Eu tenho memória ruim e uma dificuldade enorme para decorar regras. Tudo bem, o bom mestre não é aquele que sabe de cor todas as regras, ser um bom mestre demanda dedicação ao jogo e às pessoas do grupo. Demanda cordialidade, acolhimento, empatia com os outros e sim, amizade (mesmo que você não conheça as pessoas com quem está jogando).


Criou-se a ideia de que o mestre é superior aos demais jogadores, justamente porque esse é o papel que se não for preenchido, o jogo não acontece. 


Criou-se uma lenda e uma aura que envolve o mestre, como se fosse muito difícil se tornar um, como se os pobres mortais não fossem capazes de ocupar essa posição. 


Criou-se a noção errada de que o mestre manda na coisa toda, ao se atribuir a ele o papel de árbitro. Ora, nos esportes, na justiça, na escola, aquele que avalia e julga as ações dos outros tem uma aura de autoridade intocável, não é? Pois bem, isso passou para o Mestre de RPG. 


Só que há um limite muito, mas muito tênue, entre autoridade e abuso. E com um simples deslize, a relação entre o mestre e outros jogadores pode ir rapidamente para uma relação entre opressor e oprimido. 


Nosso papel, sendo o RPG um jogo social e político, é alertar para que não seja formada essa relação em seus jogos. E a forma mais tranquila de impedir que isso ocorra é tirar o mestre do pedestal. 


Eu saí do meu isolamento e jejum de RPG porque novamente temos essa demanda. A forma como jogamos mudou, e um risco claro desses novos cursos de “Como se tornar um Mestre” é colocar o mestre ainda mais alto no pedestal. 


“Eu sou mestre há mais de 20 anos”; “Eu li mais livros do que você”, “Eu fiz um curso de Mestre, eu sei o que eu estou fazendo”...


… amada? 



“Mas Graci, eu queria fazer um curso, eu não tenho segurança para começar a mestrar do jeito que eu estou”


Quer fazer curso? Avalie primeiro o conteúdo do mesmo, já que muitos são apenas caça-níqueis e pega-trouxa. Não confie em gente que diga que só fazendo o curso você vai ser um mestre bom, ele já começa mentindo para você. 



Coisas que não fazem nenhum sentido em um curso para mestres de RPG:

- História do RPG ou de determinado jogo

- Detalhes mecânicos sobre determinado sistema, já que cada jogo tem seu próprio conjunto de regras

- Ênfase em um único sistema ou tipo de cenário / ambientação de jogo (ninguém precisa de um curso pra mestrar D&D, isso tá mais que mastigado nos livros de D&D, por exemplo). 

- insinuações de que o Mestre é alguém especial ou uma figura de poder e que só com o curso ele vai se sair bem.



Coisas que fazem sentido em um curso para mestres de RPG:

- Como envolver seus jogadores

- Como melhorar sua comunicação

- Como lidar com jogadores novatos

- Como lidar com jogadores problemáticos

- Como escrever um enredo coeso

- Isso não é um teatro: os personagens de jogador devem ter liberdade, não podem ser conduzidos pelo mestre a fazer o que ele quer

- Como resolver conflitos sem perder amigos

- Não é mestre x jogadores, todos constroem a história juntos

- Os protagonistas dessa história são os personagens de jogador e não os NPCs.

- Nem tudo é preto no branco

- RPG é uma atividade social, portanto precisa de um contrato social e um ambiente seguro para todos

- Palavras de segurança e limites de conforto para jogadores e mestres

E por aí vai. 



Lembre-se: seja em um encontro, presencial ou virtual, com o seu grupo de amigos, ou mesmo quando você paga para que alguém mestre para você, o mais importante no jogo é que todos ajam como uma unidade, harmoniosamente, visando construir a história enquanto se divertem. Se alguém estiver, propositalmente ou não, oprimindo, assediando, ameaçando ou aterrorizando o outro (não de brincadeira, mas sim de forma séria) a ponto de incomodar ou machucar, alguma coisa nesse jogo está indo muito errado. 


Infelizmente, devido à cultura opressora que foi criada de que o mestre é superior e deve ser respeitado e obedecido mesmo quando está sendo abusivo, muitos jogos são comprometidos. 


Muitos desses mestres vão dar carteirada refutando o que eu escrevi aqui. É o que acontece quando alguém assume uma posição de poder pelo medo, e se sente ameaçado: eles revidam tentando diminuir a fala de quem discorda. 


O que nós podemos fazer? No momento, é ignorar a fala deles, parar de jogar confete pra quem parou no tempo, e propagar a ideia de mesas de RPG mais saudáveis, divertidas e inclusivas, trazendo mais gente para o jogo.




Queria terminar com o seguinte: 


Não tenha medo de mestrar, e nunca mais vai te faltar mesa de RPG.

Incentive todos os jogadores da sua mesa a mestrarem também, assim todo mundo vai perceber que ser mestre não tem lá tantas vantagens assim. 


Além de, obviamente, vocês poderem revezar e aumentarem o repertório de mesas!






6 comentários:

  1. Excelente texto. Mestrar é algo que deve ser incentivado e, com boas práticas e não com discursos que reforçam autoridade. Quanto mais mestres conduzindo jogos de forma diversa, melhor!

    ResponderExcluir
  2. Nossa Graci, parabéns pelo texto, acho que você falou tudo e mais um pouco, ser mestre não é estar no pedestal e ser o ser supremos, e como disse ser humano, ter empatia, e abrir um livro em branco e deixar os jogadores preencherem a linha. Por fim jogamos para nos divertir e nos socializar e não para nos estressar.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada. Gostaria que mais pessoas passassem a pensar nessas coisas. Teríamos um jogo melhor para todes

      Excluir
  3. Interessante.
    Bom texto, me fez lembrar o motivo pelo qual comecei a mestrar.
    Compreendo que mestres passam por uma fase que são consumidos pelo poder, mas cabe aos mesmo se desafogarem de tais problemas e nadar até a margem aonde existem outras formas de se divertir como mestre. Cabe a nós, jogadores e mestres filtrarmos a si mesmo para fazermos tal evolução.
    Valeu pelo texto.
    att

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Pior é que tem gente que se gaba de mestrar há mais de 20 anos, e se prendeu tanto a essa postura de "poderoso" que faz mais de 20 anos que os jogos dele são opressivos.

      Excluir