quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Estão querendo gourmetizar o seu RPGzinho online, não caia nessa!

Mais um post da série "opiniões impopulares da Graci". 
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Em tempos de pandemia, sem poder se encontrar presencialmente, jogar online passou a ser uma necessidade. 

Não podendo mais voltar a se encontrar presencialmente, as pessoas passaram a usar Discord, Roll20 e outras plataformas para jogar. E isso é ótimo, porque distância deixou de ser uma barreira. Entretanto, streamers de RPG, que são o modelo óbvio para as pessoas que nunca jogaram online se espelharem, estão passando uma ideia totalmente glamourizada e irreal que você acaba adquirindo consciente ou inconscientemente: que você precisa de uma internet rápida e estável, de um local bonito com vista bacana, precisa estar bem arrumado, penteado, bem vestido e até maquiado (cruzes, parece que vão te enforcar se a sua testa estiver brilhando), precisa montar um “estúdio” caseiro com acústica boa para não pegar o som externo, tem de mandar fazer uma skin bonitona e exclusiva para o seu jogo, precisa dispor seu equipamento de modo a mostrar sua bela coleção de RPG ou o quanto você é engajado em assuntos nerds, precisa até de boa iluminação para jogar!!! Pelos deuses, tudo isso é bobagem! O que vai definir a qualidade do seu jogo não é nenhum desses aspectos idealizados, é o engajamento de todos no jogo em si. 


O RPG Gourmetizado, pronto para você comer.
O RPG Gourmetizado, pronto para você comer. 


Num país como o Brasil, ter acesso à internet, mesmo que de má qualidade, já é um privilégio. Muitas pessoas não terão acesso a esse texto, não porque o blog não tem muita abrangência, e sim, porque elas não tem sequer internet para ler esse texto.  Muitas pessoas só tem acesso à internet às custas de muito sacrifício, inclusive, e pagam por esse acesso por causa de real necessidade. 

No final das contas, o que você precisa realmente para jogar online, é ter acesso à internet. O resto é luxo e coisa que essa galera acaba enfiando na sua cabeça. Eles podem ter imitado outros streamers e repetem isso sem nem pensar que a maioria das pessoas que tem condições de jogar online não vão poder dispor de tudo isso e que o profissionalismo que ele mostra pode estar inibindo outras pessoas, ou (e em alguns casos eu realmente acredito que seja essa a razão) eles são mesmo elitistas e não querem te ver desfrutando dos benefícios e do prazer de jogar RPG como eles, então eles querem te convencer que esse modelo elitizado de jogo é o único válido e correto, e que você deve se adequar a isso tudo para jogar online.


Primeira coisa que você precisa saber: ter um “estúdio” bonitão e profissional e uma internet turbinada só é necessário se você for se profissionalizar, for virar Youtuber, streamer do Twitch ou mestre pago, e ganhar dinheiro com isso. Nesse caso toda essa preparação, que custa caro, é um investimento, e essas pessoas pretendem ter o retorno para esse investimento o mais rápido possível. Caso contrário, vai com seu celular ou notebook meia-boca e fone de ouvido com microfone mesmo que está muito bom.

Segunda coisa que você precisa saber: a galera com quem você vai jogar não deve estar nem aí pro fundo que a sua webcam mostra, eles devem estar ali para jogar com você, para criar uma história juntos num mundo que não existe. Se atrás de você está a sua janela com vidro trincado, se aparece a fiação gambiarra que você precisou fazer porque sua casa não tem tomadas suficientes, se a pintura da sua parede descascou, dane-se. Se eles se importarem com isso eles não te merecem: vá jogar com pessoas menos preconceituosas.

Terceira coisa que você precisa saber: você nem ao menos precisa ligar sua webcam! Muitos jogos excelentes acontecem só por voz, e é até melhor porque se um jogador não tiver aquela internet turbinada, ou a internet dele estiver em um dia ruim, ele vai travar e lagar só de ver os vídeos dos outros, e isso acaba interferindo no fluxo do jogo. A internet de alguém no grupo pode ter banda limitada, e ela pode não ter dinheiro para contratar um serviço melhor. Forçar todo mundo a ligar a câmera é duas coisas: excludente e elitista. Tudo que eu prego nas minhas redes passa pela democratização do RPG, e se ninguém estiver vendo as condições de vida do outro, se ele penteou o cabelo ou está de pijama ou roupa velha, o jogo se torna democrático: todo mundo, representado apenas por sua voz e pelo avatar de seu personagem, é igual naquele jogo, é igual naquele mundo, é igual naquele meio!

Quarta coisa que você precisa saber: você não precisa nem da sua voz para jogar online! Lá pelos anos finais do século XX, começo do XXI, nós encurtávamos as distâncias entre as pessoas do grupo jogando por texto. Tinha jogo ao vivo por chat via IRC e programas muito simplezinhos baseados em IRC. Já existia até bot rolador de dados (apesar de ser bem rudimentar). Se você quisesse jogar, mas não tinha como jogar “em tempo real” por causa dos horários do grupo que não se encaixavam, podia optar pelo PBF, sigla para “play by forum”. Eu cheguei a jogar por fórum com brasileiros morando no Japão, nos Estados Unidos, etc. Eram pessoas que tinham ido trabalhar naqueles empregos servis “de segunda categoria” em outros países, e não conseguiam encontrar grupos de jogo onde estavam morando devido ao preconceito por serem brasileiros. Ter contato com pessoas no Brasil e jogar RPG ajudava a tornar a vida deles um pouco menos solitária. Atualmente tem muitos programas que permitem o jogo por texto em tempo real, nem vou ficar citando eles aqui, mas queria ressaltar que estou usando o Discord para mestrar por texto sem ser em tempo real, como fazíamos no comecinho do século, e está sendo muito bom! Cada jogador posta quando dá tempo para ele postar. Vocês deviam experimentar isso. Discord tem muitos recursos que o tornam superior aos antigos fóruns, e você pode criar seu servidor com suas próprias regras e bots de rolagem de dados, muito mais facilmente do que era criar um fórum gratuito com rolador de dados. Esses roladores pré-históricos eram bem limitados, os bots para RPG do Discord são fantásticos!


Então, não se intimide pela aparência de streamings de RPG. Muitos streamers são gente boa e não fazem nem ideia que esse formato profissional deles pode estar te inibindo. Eu só queria escrever isso pra te falar que nada disso é necessário para você jogar, e te dar alternativas caso você não tenha acesso a coisas como uma internet decente e uma câmera boa. A única coisa que você realmente precisa é de acesso à internet, e conseguir rodar o Discord ou outro programa que permita o jogo. Discord e Roll 20 têm a vantagem de rodar no navegador. Discord pode ser usado de forma totalmente funcional no aplicativo do celular. Se ainda assim, os seus equipamentos não conseguirem rodar o programa que o mestre especificou, não tenha vergonha de conversar com ele. Se ele se importa com você, ele não vai te excluir do jogo, vai procurar uma alternativa.


Graci

3 comentários:

  1. Revisito jogos por texto neste momento. Um resgate interessante, que traz muitas pessoas novas ao rpg. Passei a pensar nos jogos por texto em um país com plano de internet limitado como um caminho para a expansão de jogadores e tenho trabalhado nisso.

    Um texto bem interessante para pensar no jogo online e nas questões de nossos tempos.

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    1. De dentro da subcultura dos fandoms, uma grande quantidade de jovens faz roleplay por texto, sem regras, dos personagens de uma obra que admira, ou mesmo de seus OCs criados dentro desses cenários. A diferença entre um OC e um PJ (personagem de jogador) é uma planilha de personagem. Uma grande parcela dessas pessoas se interessa pelo nosso RPG "de livro", mas se sente intimidada quando vê uma stream. Parece outro mundo para essas pessoas. Eu acredito que para elas, a introdução ao RPG, com regras leves, mas ainda por texto, é muito mais natural e fácil de se fazer.

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    2. Graci, outro dia eu ouvi um podcast tratando dessa modalidade jogada por fandoms e achei uma maneira bem curiosa e interessante de jogar. Principalmente por saber que se trata de uma comunidade apaixonada que muitas vezes não tem contato "formal" com o se entende por RPG em termos de sistema de regras. Acho que seria uma parcela de público interessante para o hobby alcançar, se não existissem os "guardiões de portal" atravancando a entrada de nichos diferenciados.

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