segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

O que seria uma mesa de RPG “estilo anime”? E o que isso tem a ver com mesas seguras?


Vira e mexe aparece alguém falando que esse ou aquele cenário de RPG “parece anime”. Normalmente, a colocação vem seguida de uma crítica, muitas vezes preconceituosa, justificando o 'não gostar' desse jogo 'porque parece anime'.

Nesse artigo eu pretendo mostrar que essa é uma visão limitada tanto do que seria “RPG estilo anime” quanto do que seria interpretar um jogo como sendo em “estilo anime”, e quanto essa visão preconceituosa pode atrapalhar a sua diversão e limitar as possibilidades de imersão no jogo que foi rotulado.



Em primeiro lugar, vamos pensar no que é Anime. Anime nada mais é do que o nome dado às animações orientais, japonesas principalmente. Recentemente, tem ocorrido a entrada no Japão de animações chinesas, que também recebem o nome de anime. Em terras tupiniquins, às vezes a gente nem fica sabendo que esses “animes” são chineses, já que tivemos acesso apenas à versão dublada em japonês. Mas uma bela olhada na produtora e nos créditos já nos ajuda a diferenciar os animes japoneses dos chineses.



Normalmente quando pensamos em anime, vem à mente dos jogadores de RPG mais velhos as produções que tínhamos acesso na TV aberta antigamente. Basicamente elas se dividiam em animes de ação, para garotos, e animes fofinhos, para garotas. E normalmente, quando alguém rotula um cenário de RPG como anime, está falando nos animes de ação (aqueles para garotos). Mas a classificação de gêneros de animes não é bem assim, ela é tão complexa quanto qualquer outra forma de mídia, podendo ser classificada em público-alvo preferencial e em gêneros.

Ushio to Tora, um anime recente que é remake de um anime para garotos dos anos 90, mas que aborda temas bastante maduros


Por público-alvo preferencial, entendemos o público que será a maior parte dos fãs daquela obra. O que não impede, pelo contrário, que outros públicos gostem da obra. Quanto mais abrangente a mesma, melhor. Então é muito comum que os produtores de esforcem para que, mesmo que um anime seja preferencialmente dedicada a uma faixa etária e gênero, outras pessoas assistam, gostem e comentem. Em anime (e mangá), essas categorias são:


Boku no Hero Academia, Shonen
Shounen - destinado principalmente ao público alvo masculino mais jovem. Comumente é relacionado aos gêneros de ação, aventura ou artes marciais. Pode envolver lutas ou violência, mas de uma forma mais leve, respeitando a idade do público alvo.










Gangsta, Seinen
Seinen - destinado principalmente ao público masculino adulto, na faixa entre 18 e 30 anos. Pode ser considerado como o Shounen para o público mais maduro, podendo conter alta carga emocional, violência ou sexualidade.











Akatsuki no Yona, Shoujo
Shoujo - destinado principalmente ao público feminino mais jovem. Comumente é relacionado aos gêneros de romance, fantasia e sobrenatural. Assim como o Shounen, temas mais sensíveis sempre respeitam a idade do público alvo.














Shouwa Genroku Rakugo Shinjuu, Josei
Josei - destinado principalmente ao público feminino adulto, na faixa entre 18 e 30 anos. Normalmente essas histórias são realistas, contando sobre a vida cotidiana dos personagens. É comum estar intimamente relacionado a romance e drama.









As quatro categorias de público-alvo preferencial são igualmente anime, mesmo podendo ser tão diferentes entre si. Mas veja, quando pensamos em mestrar uma mesa de RPG, a escolha do público-alvo, ou seja, para quem vamos mestrar e que tipo de história vamos contar para atrair esse público, não é a pedra fundamental da aventura e/ou crônica?

Independente do cenário e sistema escolhido para mestrar, essas quatro definições por público alvo deveriam nortear a criação da história que você pretende mestrar. Apesar de estarem separadas por gênero, boas histórias atraem tanto o público masculino como o feminino. A diferença principal entre Shounen / Seinen e Shoujo / Josei será a importância da ação e dos combates durante o jogo. Basicamente, ao se transportar esses gêneros para o RPG, a diferença dirá mais respeito à sensibilidade emocional nessas histórias do que ao papel da ação nas mesmas. Sensibilidade emocional geralmente também está relacionada a mesas seguras, então é uma boa ideia definir sua aventura mais como base na idade dos jogadores do que no gênero dos mesmos. Liberte-se da diferenciação entre Shounen e Shoujo. Crie histórias que sejam uma mistura dos dois gêneros e elas irão cativar todos os jogadores de sua mesa.

Psycho-Pass, um Seinen de ficção científica, drama, temas maduros, mistério, etc. Ou seria Josei, ao se focar no amadurecimento e conflitos da personagem principal? Uma boa história acaba atraindo igualmente homens e mulheres.


Por outro lado, a diferenciação de idade e maturidade dos jogadores é essencial. Uma história Seinen dá abertura a temas sensíveis, que podem ativar gatilhos de traumas de jogadores, atrapalhando a diversão. Se você vai cruzar a linha que diferencia Shounen e Shoujo de Seinen e Josei, deixe isso muito bem claro para os jogadores.

Bungou Stray Dogs, porque tudo fica melhor com Cthulhu


Além do público-alvo, os animes e mangás também se diferenciam por gêneros literários, assim como qualquer outra obra, e da mesma forma como todo e qualquer cenário de RPG. Quando for mestrar, utilize a classificação abaixo, para deixar os jogadores de sobreaviso com relação ao que poderá ser encontrado na aventura.

Se algum deles estiver desconfortável com algum dos temas apresentados, conversem. Muito mais importante que usar ou não um tema sensível em seu jogo, é a forma como esse tema será abordado. Nunca use temas sensíveis sem antes conversar com seus jogadores.

Re:Zero explora loucura e desespero de uma forma bastante explícita e cruel


Alguns gêneros de animes bastante comuns incluem:
Ação - lutas, violência ou outra forma de atividade agressiva. Exemplos: Yuyu Hakusho, Bungou Stray Dogs
Adulto - define histórias 18+, podendo conter temas como violência extrema ou erotismo explícito. Exemplos: Psycho Pass, Valvrave, Parasyte
Artes Marciais - a história gira em torno de combates de artes marciais. Exemplos: Dragon Ball, Rurouni Kenshin, Naruto
Aventura - as histórias envolvem viagens ou exploração em busca de um objetivo. Exemplos: Magi: The Labyrinth of Magic, Mushishi, Fullmetal Alchemist: Brotherhood,
Comédia - histórias com o objetivo de rir, quer façam ou não sentido. Exemplos: Sakamoto Desu Ga?, Gugure! Kokkuri-san, Excel Saga
Doujinshi - é a adaptação feita por fãs de uma história já existente, usando os mesmos personagens para contar uma história paralela, não oficial. Quando jogamos RPG com personagens oficiais estamos fazendo Doujinshi.
Drama - o drama está relacionado a alto envolvimento dos personagens com emoções negativas, como tensão e tristeza. Exemplos: Death Parade, Orange, Zankyou no Terror.
Ecchi - explora e exibe a sexualidade, mas não de forma explícita. Pode ser considerado um passo abaixo do Hentai (ver abaixo). Exemplos: Nanatsu no Taizai, Shokugeki no Souma, Golden Boy.
Esportes - o anime é focado em um esporte, e os esforços de atletas para superar seus próprios limites. Exemplos: Yuri!!! on Ice, Kuroko no Basket, Sangatsu no Lion
Fantasia - o cenário é um mundo onde a magia é comum, e criaturas fantásticas coexistem com os humanos mundanos. Exemplos: Shingeki no Kyojin, Log Horizon, Gate: Jieitai Kanochi nite, Kaku Tatakaeri
Ficção Científica - Especulação acerca da ciência e tecnologia do futuro. Exemplos: Sidonia no Kishi, Mahouka Koukou no Rettousei, Heavy Object
Gender Bender - diz respeito à troca de gênero, seja através de roupas e maquiagem ou mesmo pela troca de corpo. Exemplos: Ranma ½, Fushigi Yuugi, Mahou shoujo Ikusei Keikaku
Harém e Otome - quando um personagem masculino se vê cercado de personagens femininas (Harém) ou uma personagem feminina se vê cercada de personagens masculinos (Otome) e a história gira em torno disso. Exemplos: Gakusen Toshi Asterisk, Love Hina, Kamigami no Asobi.
Horror - histórias criadas para gerar medo, normalmente relacionadas ao sobrenatural. Exemplos: Another, Kiseijuu: Sei no Kakuritsu, Berserk
Histórico - a trama se desenvolve em algum momento histórico. A caracterização do cenário tem um grau maior ou menor de acuracidade relacionado à época escolhida. Exemplos: Shouwa Genroku Rakugo Shinjuu, Hotaru no Haka, Arslan Senki
Maduro - diferente da categoria “adulto”, que é 18+, maduro é um pouco mais leve. Entretanto pode conter violência extrema, sangue e gore, conteúdo sexual e linguagem imprópria. Exemplos: Akira, Ghost in the Shell, Cowboy Bebop
Mecha - histórias onde os personagens são pilotos de uma máquina humanóide. Nem sempre as histórias estão relacionadas ao gênero de ficção científica, e não necessariamente o Mecha é uma máquina. Exemplos: Evangelion, Aldnoah.Zero, Soukyuu no Fafner
Mistério - é o gênero investigativo onde o objetivo é resolver casos sem explicação, podendo os mesmos ter ou não ligação com o sobrenatural. Exemplos: Boku dake ga Inai Machi, Hyouka, Rokka no Yuusha.
Psicológico - esse gênero explora os dramas, traumas e mesmo distúrbios psicológicos e psiquiátricos dos personagens. Exemplos: Monster, Mahou Shoujo Madoka Magica, Paprika
Romance - dá ênfase nas relações romântico-afetivas entre os personagens. Exemplo: Akagami no Shirayuki-hime, Saikano
Shounen-ai / Shoujo-ai - focados no relacionamento romântico entre personagens do mesmo sexo, são as versões “seguras para ver no trabalho” dos gêneros Yaoi e Yuri. Exemplos: Junjou Romantica,Super Lovers
Slice of Life - retrata eventos cotidianos, mas de grande importância, na vida dos personagens. Exemplos: Hyouka, Barakamon, ReLIFE
Sobrenatural - engloba a existência de poderes, criaturas de origem espiritual ou demoníaca, com elementos de misticismo e religiões. Exemplos: Natsume Yuujinchou, Ao no Exorcist, Noragami
Superpoderes - Independente da origem, que pode ser genética, tecnológica, alienígena, psíquica, os personagens possuem superpoderes. Exemplos: One Punch Man, Charlotte, Boku no Hero Academia
Vida Escolar - a história se passa principalmente dentro de uma escola, colégio ou universidade. Exemplos: Kiznaiver, Rewrite, Saiki Kusuo no Psy Nan

Como podemos ver, em nenhum anime, assim como em nenhum cenário de RPG, a obra pode ser definida com um gênero só. Histórias bem feitas envolvem vários gêneros, embora possa haver a predominância de um deles. Então, ao categorizar os gêneros de sua mesa de jogo, escreva-os na ordem de importância (pelo menos aquela que você acredita). Mais para a frente, com o contato com os jogadores, a ordem de importância dos gêneros pode mudar, algum deles pode desaparecer e outros podem ser incorporados. Não se preocupe com isso agora. Preocupe-se em criar algo que os seus jogadores vão gostar.

Mahou Shoujo Madoka Magica parece apenas um shoujo bonitinho, mas é um dos animes mais cruéis e pesados que eu já assisti

A última coisa a informar aos seus jogadores são os avisos de gatilhos. Tendo optado por temas maduros ou que podem causar desconforto para algumas pessoas, é responsabilidade do Mestre utilizar avisos de gatilho (trigger warning , ou TW), avisando os jogadores de antemão sobre conteúdos que possam gerar desconforto nos mesmos. É recomendável, ao se jogar com temas maduros, ter conversas individuais ou em grupo, deixando claro quais são os limites de cada jogador. O jogo de RPG tem de ser divertido, não desconfortável ou traumático. Todo mundo possui gatilhos e às vezes eles são completamente inesperados para pessoas que não os possuem. Citando como exemplo, um jogador que possui fobia a borboletas. O Mestre pode estar tentando fazer uma cena bonitinha com borboletas e sem querer, prejudicar a diversão de um dos jogadores. Por isso a conversa prévia é necessária. Uma lista de avisos de gatilhos está listada como anexo ao final desse artigo, mas caso acredite que é necessário inserir outros ou modificar esses, fique à vontade.

Death Parade, um anime cheio de temas sensíveis

A esse ponto da leitura você deve estar se questionando sobre a pergunta título desse artigo. O que seria uma mesa de RPG “estilo anime”? E o que isso tem a ver com mesas seguras?

Eu era uma fã de animes e mangás antes mesmo de começar a jogar RPG. Eu já fiz parte, de forma bastante ativa, ao “mundo Otaku”. Anime é uma coisa que eu conheço relativamente bem. E toda vez que alguém reclamava que tal RPG parecia anime, eu me questionava: mas existe RPG que não parece Anime?

Para mim, é natural pensar em público-alvo e em gêneros quando crio uma aventura ou crônica, ou mesmo quando leio um livro de cenário. É tão natural pensar que o sistema Savage Worlds funciona muito bem com Shonen, enquanto o Fate fica perfeitinho para Shoujo, mas que um bom enredo para o jogo não será limitado de forma alguma pelo sistema que eu escolher... E quando eu penso no grau de maturidade que eu vou colocar nas minhas mesas, primeiramente eu penso nas pessoas que vão jogar ela. E se eu conheço essas pessoas, também no tanto que eu posso explorar os gatilhos que eu já conheço sem deixá-las mal. Sim, porque muitos animes e mangás de excelente qualidade exploram os gatilhos de uma forma responsável e levando a uma conclusão saudável, mas isso só é possível de ser feito se você conhecer muito bem os jogadores.

Enfim, para mim, falar que um cenário parece anime é esquisito, já que anime é uma forma e não um gênero. Mas eu não consigo pensar numa mesa de RPG sem fazer paralelos com um ou outro título de anime que eu já tenha assistido.


Sidonia no Kishi, Seinen de ficção científica que apela para o ecchi como alívio cômico







Anexo: lista com alguns avisos de gatilho
Abuso e agressão sexual
Abuso (físico, mental, emocional, verbal, sexual)
Abuso de crianças / pedofilia
Crueldade com animais ou morte de animal
Comportamento auto-prejudicial (auto-agressão, distúrbios alimentares, etc.)
Suicídio
Violência excessiva ou gratuita
Agulhas e objetos perfurantes
Representação de pornografia (incluindo pornografia infantil)
Incesto (incluindo qualquer elemento de relações românticas ou sexuais entre família, em tema, pensamento ou atividade)
Seqüestro (privação violenta de / desrespeito pela autonomia pessoal)
Morte ou personagem morrendo
Gravidez / Parto
Aborto
Sangue
Distúrbio emocional ou mental
Uso de drogas
Descrições e imagens de procedimentos médicos
Corpos, ossos ou órgãos
-ismos - conteúdo referente a preconceitos e ódio de qualquer tipo
Opressão, marginalização, miséria
Sexo (mesmo consensual)
Animais (aranhas, cães, serpentes, e outros que possam ser gatilhos de fobias)
Fluidos corpóreos e secreções
Coisas gosmentas
Escarificação
Qualquer coisa que possa inspirar pensamentos intrusivos em pessoas com TOC
palavrões e xingamentos



4 comentários:

  1. http://gracilariopsis.blogspot.com.br/2016/12/o-que-nao-e-rpg-estilo-anime-e-como.html continuação aqui

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  2. Gostei muito. Apesar de ser um espectador de anime antes mesmo de saber o que era anime (era tudo "desenho animado japonês"), na época de Príncipe Planeta, Speedy Racer e Esquadrão Arco-Íris, desconhecia essas subdivisões do gênero até alguns anos atrás, quando voltei a assisti-los de forma mais regular. Eu entendia que existia uma forma de classificação da mídia, mas não que tivesse uma relação de conteúdo tão complexa e que pudesse ser pensada como gênero para RPG.
    Obrigado!

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  3. Bacana o texto. Vale mesmo pena analisar os o deve ou não a mesa e respeitar cada jogador!

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