Vira e mexe aparece
alguém falando que esse ou aquele cenário de RPG “parece anime”.
Normalmente, a colocação vem seguida de uma crítica, muitas vezes
preconceituosa, justificando o 'não gostar' desse jogo 'porque
parece anime'.
Nesse artigo eu
pretendo mostrar que essa é uma visão limitada tanto do que seria
“RPG estilo anime” quanto do que seria interpretar um jogo como
sendo em “estilo anime”, e quanto essa visão preconceituosa pode
atrapalhar a sua diversão e limitar as possibilidades de imersão no
jogo que foi rotulado.
Em primeiro lugar,
vamos pensar no que é Anime. Anime nada mais é do que o nome dado
às animações orientais, japonesas principalmente. Recentemente,
tem ocorrido a entrada no Japão de animações chinesas, que também
recebem o nome de anime. Em terras tupiniquins, às vezes a gente nem
fica sabendo que esses “animes” são chineses, já que tivemos
acesso apenas à versão dublada em japonês. Mas uma bela olhada na
produtora e nos créditos já nos ajuda a diferenciar os animes
japoneses dos chineses.
Normalmente quando
pensamos em anime, vem à mente dos jogadores de RPG mais velhos as
produções que tínhamos acesso na TV aberta antigamente.
Basicamente elas se dividiam em animes de ação, para garotos, e
animes fofinhos, para garotas. E normalmente, quando alguém rotula
um cenário de RPG como anime, está falando nos animes de ação
(aqueles para garotos). Mas a classificação de gêneros de animes
não é bem assim, ela é tão complexa quanto qualquer outra forma
de mídia, podendo ser classificada em público-alvo preferencial e
em gêneros.
Ushio to Tora, um anime recente que é remake de um anime para garotos dos anos 90, mas que aborda temas bastante maduros |
Por público-alvo
preferencial, entendemos o público que será a maior parte dos fãs
daquela obra. O que não impede, pelo contrário, que outros públicos
gostem da obra. Quanto mais abrangente a mesma, melhor. Então é
muito comum que os produtores de esforcem para que, mesmo que um
anime seja preferencialmente dedicada a uma faixa etária e gênero,
outras pessoas assistam, gostem e comentem. Em anime (e mangá),
essas categorias são:
Boku no Hero Academia, Shonen |
Shounen - destinado
principalmente ao público alvo masculino mais jovem. Comumente é
relacionado aos gêneros de ação, aventura ou artes marciais. Pode
envolver lutas ou violência, mas de uma forma mais leve, respeitando
a idade do público alvo.
Gangsta, Seinen |
Seinen - destinado
principalmente ao público masculino adulto, na faixa entre 18 e 30
anos. Pode ser considerado como o Shounen para o público mais
maduro, podendo conter alta carga emocional, violência ou
sexualidade.
Akatsuki no Yona, Shoujo |
Shoujo - destinado
principalmente ao público feminino mais jovem. Comumente é
relacionado aos gêneros de romance, fantasia e sobrenatural. Assim
como o Shounen, temas mais sensíveis sempre respeitam a idade do
público alvo.
Shouwa Genroku Rakugo Shinjuu, Josei |
Josei - destinado
principalmente ao público feminino adulto, na faixa entre 18 e 30
anos. Normalmente essas histórias são realistas, contando sobre a
vida cotidiana dos personagens. É comum estar intimamente
relacionado a romance e drama.
As quatro categorias de
público-alvo preferencial são igualmente anime, mesmo podendo ser
tão diferentes entre si. Mas veja, quando pensamos em mestrar uma
mesa de RPG, a escolha do público-alvo, ou seja, para quem vamos
mestrar e que tipo de história vamos contar para atrair esse
público, não é a pedra fundamental da aventura e/ou crônica?
Independente do cenário
e sistema escolhido para mestrar, essas quatro definições por
público alvo deveriam nortear a criação da história que você
pretende mestrar. Apesar de estarem separadas por gênero, boas
histórias atraem tanto o público masculino como o feminino. A
diferença principal entre Shounen / Seinen e Shoujo / Josei será a
importância da ação e dos combates durante o jogo. Basicamente, ao
se transportar esses gêneros para o RPG, a diferença dirá mais
respeito à sensibilidade emocional nessas histórias do que ao papel
da ação nas mesmas. Sensibilidade emocional geralmente também está
relacionada a mesas seguras, então é uma boa ideia definir sua
aventura mais como base na idade dos jogadores do que no gênero dos
mesmos. Liberte-se da diferenciação entre Shounen e Shoujo. Crie
histórias que sejam uma mistura dos dois gêneros e elas irão
cativar todos os jogadores de sua mesa.
Por outro lado, a
diferenciação de idade e maturidade dos jogadores é essencial. Uma
história Seinen dá abertura a temas sensíveis, que podem ativar
gatilhos de traumas de jogadores, atrapalhando a diversão. Se você
vai cruzar a linha que diferencia Shounen e Shoujo de Seinen e Josei,
deixe isso muito bem claro para os jogadores.
Bungou Stray Dogs, porque tudo fica melhor com Cthulhu |
Além do público-alvo,
os animes e mangás também se diferenciam por gêneros literários,
assim como qualquer outra obra, e da mesma forma como todo e qualquer
cenário de RPG. Quando for mestrar, utilize a classificação
abaixo, para deixar os jogadores de sobreaviso com relação ao que
poderá ser encontrado na aventura.
Se algum deles estiver
desconfortável com algum dos temas apresentados, conversem. Muito
mais importante que usar ou não um tema sensível em seu jogo, é a
forma como esse tema será abordado. Nunca use temas sensíveis sem
antes conversar com seus jogadores.
Re:Zero explora loucura e desespero de uma forma bastante explícita e cruel |
Alguns gêneros de
animes bastante comuns incluem:
Ação - lutas,
violência ou outra forma de atividade agressiva. Exemplos: Yuyu
Hakusho, Bungou Stray Dogs
Adulto - define
histórias 18+, podendo conter temas como violência extrema ou
erotismo explícito. Exemplos: Psycho Pass, Valvrave, Parasyte
Artes Marciais - a
história gira em torno de combates de artes marciais. Exemplos:
Dragon Ball, Rurouni Kenshin, Naruto
Aventura - as histórias
envolvem viagens ou exploração em busca de um objetivo. Exemplos:
Magi: The Labyrinth of Magic, Mushishi, Fullmetal Alchemist:
Brotherhood,
Comédia - histórias
com o objetivo de rir, quer façam ou não sentido. Exemplos:
Sakamoto Desu Ga?, Gugure! Kokkuri-san, Excel Saga
Doujinshi - é a
adaptação feita por fãs de uma história já existente, usando os
mesmos personagens para contar uma história paralela, não oficial.
Quando jogamos RPG com personagens oficiais estamos fazendo
Doujinshi.
Drama - o drama está
relacionado a alto envolvimento dos personagens com emoções
negativas, como tensão e tristeza. Exemplos: Death Parade, Orange,
Zankyou no Terror.
Ecchi - explora e exibe
a sexualidade, mas não de forma explícita. Pode ser considerado um
passo abaixo do Hentai (ver abaixo). Exemplos: Nanatsu no Taizai,
Shokugeki no Souma, Golden Boy.
Esportes - o anime é
focado em um esporte, e os esforços de atletas para superar seus
próprios limites. Exemplos: Yuri!!! on Ice, Kuroko no Basket,
Sangatsu no Lion
Fantasia - o cenário é
um mundo onde a magia é comum, e criaturas fantásticas coexistem
com os humanos mundanos. Exemplos: Shingeki no Kyojin, Log Horizon,
Gate: Jieitai Kanochi nite, Kaku Tatakaeri
Ficção Científica -
Especulação acerca da ciência e tecnologia do futuro. Exemplos:
Sidonia no Kishi, Mahouka Koukou no Rettousei, Heavy Object
Gender Bender - diz
respeito à troca de gênero, seja através de roupas e maquiagem ou
mesmo pela troca de corpo. Exemplos: Ranma ½, Fushigi Yuugi, Mahou
shoujo Ikusei Keikaku
Harém e Otome - quando
um personagem masculino se vê cercado de personagens femininas
(Harém) ou uma personagem feminina se vê cercada de personagens
masculinos (Otome) e a história gira em torno disso. Exemplos:
Gakusen Toshi Asterisk, Love Hina, Kamigami no Asobi.
Horror - histórias
criadas para gerar medo, normalmente relacionadas ao sobrenatural.
Exemplos: Another, Kiseijuu: Sei no Kakuritsu, Berserk
Histórico - a trama se
desenvolve em algum momento histórico. A caracterização do cenário
tem um grau maior ou menor de acuracidade relacionado à época
escolhida. Exemplos: Shouwa Genroku Rakugo Shinjuu, Hotaru no Haka,
Arslan Senki
Maduro - diferente da
categoria “adulto”, que é 18+, maduro é um pouco mais leve.
Entretanto pode conter violência extrema, sangue e gore, conteúdo
sexual e linguagem imprópria. Exemplos: Akira, Ghost in the Shell,
Cowboy Bebop
Mecha - histórias onde
os personagens são pilotos de uma máquina humanóide. Nem sempre as
histórias estão relacionadas ao gênero de ficção científica, e
não necessariamente o Mecha é uma máquina. Exemplos: Evangelion,
Aldnoah.Zero, Soukyuu no Fafner
Mistério - é o gênero
investigativo onde o objetivo é resolver casos sem explicação,
podendo os mesmos ter ou não ligação com o sobrenatural. Exemplos:
Boku dake ga Inai Machi, Hyouka, Rokka no Yuusha.
Psicológico - esse
gênero explora os dramas, traumas e mesmo distúrbios psicológicos
e psiquiátricos dos personagens. Exemplos: Monster, Mahou Shoujo
Madoka Magica, Paprika
Romance - dá ênfase
nas relações romântico-afetivas entre os personagens. Exemplo:
Akagami no Shirayuki-hime, Saikano
Shounen-ai / Shoujo-ai
- focados no relacionamento romântico entre personagens do mesmo
sexo, são as versões “seguras para ver no trabalho” dos gêneros
Yaoi e Yuri. Exemplos: Junjou Romantica,Super Lovers
Slice of Life - retrata
eventos cotidianos, mas de grande importância, na vida dos
personagens. Exemplos: Hyouka, Barakamon, ReLIFE
Sobrenatural - engloba
a existência de poderes, criaturas de origem espiritual ou
demoníaca, com elementos de misticismo e religiões. Exemplos:
Natsume Yuujinchou, Ao no Exorcist, Noragami
Superpoderes -
Independente da origem, que pode ser genética, tecnológica,
alienígena, psíquica, os personagens possuem superpoderes.
Exemplos: One Punch Man, Charlotte, Boku no Hero Academia
Vida Escolar - a
história se passa principalmente dentro de uma escola, colégio ou
universidade. Exemplos: Kiznaiver, Rewrite, Saiki Kusuo no Psy Nan
Como podemos ver, em
nenhum anime, assim como em nenhum cenário de RPG, a obra pode ser
definida com um gênero só. Histórias bem feitas envolvem vários
gêneros, embora possa haver a predominância de um deles. Então, ao
categorizar os gêneros de sua mesa de jogo, escreva-os na ordem de
importância (pelo menos aquela que você acredita). Mais para a
frente, com o contato com os jogadores, a ordem de importância dos
gêneros pode mudar, algum deles pode desaparecer e outros podem ser
incorporados. Não se preocupe com isso agora. Preocupe-se em criar
algo que os seus jogadores vão gostar.
Mahou Shoujo Madoka Magica parece apenas um shoujo bonitinho, mas é um dos animes mais cruéis e pesados que eu já assisti |
A última coisa a
informar aos seus jogadores são os avisos de gatilhos. Tendo optado
por temas maduros ou que podem causar desconforto para algumas
pessoas, é responsabilidade do Mestre utilizar avisos de gatilho
(trigger warning , ou TW), avisando os jogadores de antemão sobre
conteúdos que possam gerar desconforto nos mesmos. É recomendável,
ao se jogar com temas maduros, ter conversas individuais ou em grupo,
deixando claro quais são os limites de cada jogador. O jogo de RPG
tem de ser divertido, não desconfortável ou traumático. Todo mundo
possui gatilhos e às vezes eles são completamente inesperados para
pessoas que não os possuem. Citando como exemplo, um jogador que
possui fobia a borboletas. O Mestre pode estar tentando fazer uma
cena bonitinha com borboletas e sem querer, prejudicar a diversão de
um dos jogadores. Por isso a conversa prévia é necessária. Uma
lista de avisos de gatilhos está listada como anexo ao final desse
artigo, mas caso acredite que é necessário inserir outros ou
modificar esses, fique à vontade.
Death Parade, um anime cheio de temas sensíveis |
A esse ponto da leitura
você deve estar se questionando sobre a pergunta título desse
artigo. O que seria uma mesa de RPG “estilo anime”? E o que isso
tem a ver com mesas seguras?
Eu era uma fã de
animes e mangás antes mesmo de começar a jogar RPG. Eu já fiz
parte, de forma bastante ativa, ao “mundo Otaku”. Anime é uma
coisa que eu conheço relativamente bem. E toda vez que alguém
reclamava que tal RPG parecia anime, eu me questionava: mas existe
RPG que não parece Anime?
Para mim, é natural
pensar em público-alvo e em gêneros quando crio uma aventura ou
crônica, ou mesmo quando leio um livro de cenário. É tão natural
pensar que o sistema Savage Worlds funciona muito bem com Shonen,
enquanto o Fate fica perfeitinho para Shoujo, mas que um bom enredo
para o jogo não será limitado de forma alguma pelo sistema que eu
escolher... E quando eu penso no grau de maturidade que eu vou
colocar nas minhas mesas, primeiramente eu penso nas pessoas que vão
jogar ela. E se eu conheço essas pessoas, também no tanto que eu
posso explorar os gatilhos que eu já conheço sem deixá-las mal.
Sim, porque muitos animes e mangás de excelente qualidade exploram
os gatilhos de uma forma responsável e levando a uma conclusão
saudável, mas isso só é possível de ser feito se você conhecer
muito bem os jogadores.
Enfim, para mim, falar
que um cenário parece anime é esquisito, já que anime é uma forma
e não um gênero. Mas eu não consigo pensar numa mesa de RPG sem
fazer paralelos com um ou outro título de anime que eu já tenha
assistido.
Sidonia no Kishi, Seinen de ficção científica que apela para o ecchi como alívio cômico |
Anexo: lista com alguns
avisos de gatilho
Abuso e agressão
sexual
Abuso (físico, mental,
emocional, verbal, sexual)
Abuso de crianças /
pedofilia
Crueldade com animais
ou morte de animal
Comportamento
auto-prejudicial (auto-agressão, distúrbios alimentares, etc.)
Suicídio
Violência excessiva ou
gratuita
Agulhas e objetos
perfurantes
Representação de
pornografia (incluindo pornografia infantil)
Incesto (incluindo
qualquer elemento de relações românticas ou sexuais entre família,
em tema, pensamento ou atividade)
Seqüestro (privação
violenta de / desrespeito pela autonomia pessoal)
Morte ou personagem
morrendo
Gravidez / Parto
Aborto
Sangue
Distúrbio emocional ou
mental
Uso de drogas
Descrições e imagens
de procedimentos médicos
Corpos, ossos ou órgãos
-ismos - conteúdo
referente a preconceitos e ódio de qualquer tipo
Opressão,
marginalização, miséria
Sexo (mesmo consensual)
Animais (aranhas, cães,
serpentes, e outros que possam ser gatilhos de fobias)
Fluidos corpóreos e
secreções
Coisas gosmentas
Escarificação
Qualquer coisa que
possa inspirar pensamentos intrusivos em pessoas com TOC
palavrões e
xingamentos
http://gracilariopsis.blogspot.com.br/2016/12/o-que-nao-e-rpg-estilo-anime-e-como.html continuação aqui
ResponderExcluirCurti seu blog demais.
ResponderExcluirGostei muito. Apesar de ser um espectador de anime antes mesmo de saber o que era anime (era tudo "desenho animado japonês"), na época de Príncipe Planeta, Speedy Racer e Esquadrão Arco-Íris, desconhecia essas subdivisões do gênero até alguns anos atrás, quando voltei a assisti-los de forma mais regular. Eu entendia que existia uma forma de classificação da mídia, mas não que tivesse uma relação de conteúdo tão complexa e que pudesse ser pensada como gênero para RPG.
ResponderExcluirObrigado!
Bacana o texto. Vale mesmo pena analisar os o deve ou não a mesa e respeitar cada jogador!
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