quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Uma nota sobre segurança nas mesas de jogo

Olá, pessoal.

Saindo do torpor para falar sobre uma coisa muito importante: a segurança e o conforto dos jogadores na mesa de jogo. Não é de hoje que eu sempre reafirmo que RPG é para diversão, mas não só de um ou de parte dos jogadores da mesa. RPG é para diversão de TODOS.

E foi lendo o Arquivos Paranormais do Jorge dos Santos Valpaços que eu me deparei com esse trecho:



Eu compartilhei prontamente no meu Facebook e a coisa foi bem recebida por quem me segue. Isso gerou alguns compartilhamentos. Foi nos compartilhamentos que eu me deparei com isso:



A identidade da moça que acha o assunto polêmico foi preservada, pois ela provavelmente nunca parou pra pensar sobre isso. Mas o que chamou a atenção aqui foi a questão do "jogo 18+"

Normalmente quando uma pessoa fala "18+" ela está falando sobre sexo explícito. Sim, há pessoas que jogam RPG e incluem descrições vívidas de relações sexuais, e nós não podemos nem fingir que isso existe, muito menos criticar, porque RPG é para se divertir, então pare de ser chato e deixe as pessoas se divertirem! E se ela não estava falando de sexo, e sim de violência e abuso, isso não melhora em nada a questão, pelo contrário.

A gente nunca fala sobre 18+. Aparece sempre como um tabu. Só que por a gente não falar sobre isso, a coisa acaba ficando problemática e polêmica. Ah, olha só, 18+ não tem limites. Essa é a retórica mais usada pelos que defendem que não tem de ter limites. É aí que você se engana! Existe uma diferença entre o 18+ saudável e o doentio.

Estamos tão acostumados a ver coisas como normalização e romantização do estupro e da violência, a ver a culpa sobre a pedofilia e sobre o abuso sexual ser colocada na vítima, a ver nas obras 18+ que a pessoa que foi agredida ou mesmo sexualmente violentada acaba perdoando o agressor e tudo fica bem, que ao abordarmos esses temas em nossos jogos tendemos a achar que está tudo bem. Não, por favor, não está!

Se em sua mesa sexo não é um assunto a ser evitado e as descrições podem rolar até os mais íntimos detalhes, isso só diz respeito a você e ao seu grupo. Mas pedofilia, estupro, consentimento dúbio, uso de sexo como poder, etc., podem ser temas sensíveis para os jogadores e podem não apenas estragar a diversão deles, mas causar marcas e problemas em sua vida, para além do tempo de sessão de jogo. Então, em jogos de temática madura, mais ainda do que em jogos de temática mais leve, a questão dos alertas de gatilho e dos temas sensíveis a serem evitados deve sim ser abordada, e tratada com todo carinho.

Outra coisa: não normalize; não romantize. Pedofilia, estupro, violência, preconceito, escravidão e várias outras coisas SÃO RUINS PONTO FINAL. Se abordar em seus jogos, faça parecer ruim. SEMPRE É RUIM. Tem de ficar claro que foi ruim. Tem de parecer nojento e vil. Tem de ser coisa de vilão. Não é algo que pode ser simplesmente e levianamente perdoado. Não vai ficar tudo bem.

Se você está lendo isso até agora já deve ter visto algo relacionado a BDSM. Tirando da Wikipedia: "O conceito fundamental sobre o qual o BDSM se apoia é que as práticas devem ser SSC (Sãs, Seguras e Consensuais) ... O limite pessoal de cada um não deve ser ultrapassado, assim, para o fim de parar a sessão/prática, é utilizada a Safeword, ou palavra de segurança, que é pré-estabelecida entre as partes.."

Há um paralelo entre a prática de BDSM e a abordagem de temas sensíveis em RPG. As pessoas deviam aprender com o BDSM, na verdade. Mais um pouco do texto sobre a prática na Wikipedia: "Muitas das práticas BDSM são consideradas, num contexto de neutralidade ou não sexual, não agradáveis, indesejadas, ou desvantajosas. Por exemplo, a dor, a prisão, a submissão e até mesmo as cócegas são, geralmente, infligidas nas pessoas contra sua vontade, provocando essas sensações desagradáveis. Contudo, no contexto BSDM, estas práticas são levadas a cabo com o consentimento mútuo entre os participantes, levando-os a desfrutarem em conjunto." 

Quando jogamos RPG nossos personagens estão muitas vezes envolvidos em situações indesejáveis e são submetidos a isso contra a sua vontade. Mas os jogadores e o mestre/narrador devem possuir um acordo, um contrato social que permita que seu personagem sofra sem que o jogador seja emocionalmente prejudicado. O que se passa na cabeça de uma pessoa ao achar que o RPG com temas maduros não precisa ter limites? Só porque não está havendo contato físico entre as partes? Lembre-se: a evocação de traumas emocionais não depende de toque físico. A simples menção ao assunto já pode gerar problemas sérios às pessoas sensíveis a ele.

Eu já falei sobre isso, mas é sempre bom reforçar: temas sensíveis são assunto sério. É bom conversar sobre os alertas de gatilho das pessoas antes mesmo de começar o jogo (sejam eles de cunho sexual ou não), especialmente se for intenção abordar esses temas. A classificação etária do jogo não é de forma alguma uma licença para tratar sobre qualquer assunto.

Um jeito simples de garantir a segurança e conforto de todos os jogadores e aplicável a qualquer sistema e cenário é o uso de cartões. Uma face amarela, uma vermelha. Se um jogador toca a face amarela, o assunto pode rolar, mas desde que sem detalhes. Uma cena de espancamento que seria descrita em detalhes pula e passa para "ele ficou muito machucado", por exemplo. O jogador virou o cartão expondo a face vermelha? Significa que ele não consegue lidar com esse assunto, e ao mestre/narrador cabe a responsabilidade de não abordar isso. Era para acontecer um estupro? Se vira, mas o estupro não aconteceu. Bons narradores sabem lidar com isso sem interferir nos desdobramentos posteriores. No exemplo anterior, se no jogo já houve uma cena de espancamento que rolou sem que o cartão fosse tocado, o estupro pode ser convertido em espancamento. É tão pesado quanto, só que sem machucar nenhum jogador. Tem coisas que não precisam acontecer. Não teve como continuar? É melhor parar o jogo e conversar sobre, pedir uma pizza, ir jogar um board game, ir assistir um filme. Deixe claro que a sessão parou num ponto anterior à cena problemática e retome daí com outros rumos na próxima, ou nem retome, isso simplesmente não aconteceu. É sempre melhor voltar atrás com "isso nunca aconteceu, o jogo parou em tal parte, seguimos daqui" do que machucar uma pessoa. O jogo não pode ser mais importante que as pessoas que jogam ele.

Ao invés do cartão o grupo pode combinar gestos ou palavras de segurança, ou o que for mais confortável e funcional para quem está jogando. Um cartão não é funcional num LARP ou jogo on line, mas um gesto ou palavra de segurança podem ser. A forma não importa, o importante é que todos os jogos que você venha a narrar ou jogar daqui pra frente sejam seguros para todos os jogadores.

O Arquivos Paranormais possui um sistema de regras integrado à segurança na mesa de jogo que eu achei excelente. Mas outro jogo altamente recomendado, também do Jorge Valpaços, e que tem algumas páginas dedicadas a segurança em mesa de jogo, que podem ser aplicadas a qualquer sistema e/ou cenário, é o Pesadelos Terríveis, que trata diretamente dos medos e traumas dos personagens numa espiral que levará invariavelmente à deterioração mental dos mesmos, mas faz essa abordagem de forma segura para os jogadores. Recomendo a leitura a todos os que se interessam em jogos de RPG que abordam temas maduros e sensíveis.




Nota final para jogadores: existem sim, infelizmente, mestres / narradores abusivos, que vão achar que segurança em jogo e limites de temas são bobagem. Pela sua diversão e segurança, evite eles. 


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Um comentário:

  1. O bom senso diz que, de uma maneira ou de outra, há limites. Mesmo quando não há um limite expressado, o bom senso deveria estar presente. Reivindicar uma liberdade através da ausência de limites quase sempre está associada à ratificação de algum abuso, presente ou futuro.

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