sexta-feira, 26 de junho de 2015

Opinião: Cenários preconceituosos versus dificuldade em viver a fantasia

Vira e mexe alguém começa uma discussão referente ao preconceito dentro de algum cenário de RPG. Eu vejo argumentos condenando apropriação cultural, eurocentrismo, falta de diversidade étnica em personagens, falta de representação feminina e/ou racial e/ou cultural, etc. Será que isso é mesmo um problema, será que o cenário é preconceituoso, ou fomos contaminados pelos nossos medos de sermos tachados de preconceituosos?




Todo mundo quando vai escrever um cenário parte de uma premissa. Eu, você, Monte Cook, Mark Rein.Hagen, George R. R. Martin, Monteiro Lobato, ninguém está isento de usar algum tipo de inspiração cultural e histórica para o seu cenário. Essa inspiração não deveria se basear no que os outros vão pensar, e sim no que o autor está a fim de escrever. Quais suas vivências? Quais seus objetivos? Ele quer conceder diversão gratuita ou quer levar a reflexões?

zzzzzz


Eu acho que um cenário que se preocupa demais com o que vão achar dele, que coloca representatividade, que foge de situações de preconceito, que não vai levar ninguém a um pinguinho de inquietação, é um cenário chato. Sociedades são naturalmente um reflexo das imperfeições humanas, e sociedades utópicas não dão abertura nem para conflitos - que são a base do RPG - nem para reflexões dos jogadores - que são aquilo de mais benéfico que o RPG nos trás.

Exemplos de sociedades utópicas e aparentemente perfeitas nós vemos aos montes na literatura, nos quadrinhos, nos filmes, nas animações. O choque vem quando percebemos que a tal sociedade é mais podre e suja, que a perfeição é uma ilusão, e os problemas decorrem justamente dessas imperfeições veladas.

Assim o é no RPG. Se não houver nenhum preconceito vindo da sociedade, o que tornará os personagens de jogador heróis? Como eles serão diferentes do resto da população mundana, como eles serão pessoas melhores, se todo mundo é um exemplo de integridade? E essa sociedade real existe?

Já vi muito jogador reclamando que a sociedade do cenário X é machista (ou outro ista), e por isso
ela não joga. A pessoa nem se deu ao trabalho de pensar que pode ter sido objetivo do autor ao retratar a sua sociedade assim foi a de dar aos jogadores a oportunidade de criar personagens que combatem esse tipo de pensamento. E se não foi esse o objetivo, a pessoa está perdendo a oportunidade de ser um agente de mudança desse cenário. De ser o herói num nível maior do que o de matar monstros, de ser alguém que faz a diferença real naquele cenário, ao invés de compartilhar postagens contra o preconceito numa rede social. De simular ações de mudança que podem vir a ser aplicadas no mundo real.

Também já vi gente reclamando dos cenários baseados na visão eurocêntrica de mundo, por a mesma não se alinhar com a sua ideologia. E aí eu pergunto: o que há de errado em interpretar uma fantasia onde as convicções do seu personagem são diferentes da sua? É pra isso que existe o RPG, para você se ver na pele de outro, diferente de você. Eu mesma não me considero Cristã (apesar de crer em Deus com a minha própria interpretação sobre ele), e costumo gostar de jogar em cenários centrados em ideologia Cristã pelo desafio e pelo aprendizado que eles me fornecem como pessoa. Da mesma forma que conheço Cristãos que gostam de interpretar pagãos em cenários com panteões inspirados nesses deuses, porque eles não veem problema algum em dissociar as suas crenças da fantasia. Se a imagem do Deus monoteísta Cristão como manifestação de entidade maligna criada para apagar os outros deuses (conceito existente no RPG Scion) pode ser uma fantasia para um Cristão, porque um Pagão teria de ver um monstro fantasioso ou vilão inspirado em uma divindade que ele segue como uma ofensa à sua crença? Abrace a fantasia! Não se trata de religião, não se trata de crença, trata-se de fantasia e divertimento.

Outra coisa que me incomoda é o que chamam de apropriação cultural. Eu não sou oriental, gosto da cultura japonesa apesar de não conhecer como gostaria, e vira e mexe faço alguma mesa baseada em cenários de anime. Quem reclama de apropriação cultural faz de mim um monstro maligno, que está se apropriando de uma cultura que não é sua. Eu gosto, me dá prazer, diverte pessoas. Não posso fazer porque a cultura não é a minha? Não posso pegar culturas emprestadas e fazer adaptações delas para me divertir?

Quem está sendo preconceituoso? O autor que escreve se inspirando em culturas e problemas reais mesmo que não sejam sua cultura ou seus problemas, após pesquisar sobre isso? O autor que omite alguns aspectos da diversidade porque no seu cenário eles não tem lugar ou seriam irrelevantes para a sua proposta? Ou a pessoa que se incomoda com esses cenários e se recusa a mergulhar na fantasia de interpretar algo que não é real e um ponto de vista diferente do seu? Apenas pare e pense.

Eu não entendo se isso é um temor vindo da falta de autoconfiança em suas crenças e ideologias, uma necessidade de parecer politicamente correto para não ser criticado pelo mundo, ou falta de empatia para aquele ou aquilo que é diferente das suas experiências. Nesse terceiro caso, é uma pena. RPG é a melhor oportunidade de adquirir empatia pelo diferente que qualquer um de nós poderá encontrar sem correr riscos reais de ferir pessoas no mundo real. Mas criticar um cenário fere pessoas no mundo real. Fere o autor e fere os fãs do cenário. Fere a cultura na qual aquele cenário se inspirou. E acaba ferindo de tabela, pessoas que passam a sentir-se excluídas ou alvo de preconceito por aquele cenário, influenciadas pela opinião do acusador. E tudo isso, sem que o autor do cenário tivesse tido nenhuma pretensão além da de se divertir e proporcionar diversão aos outros.

Aventuras, campanhas, personagens, esses sim podem ser preconceituosos, problemáticos, daninhos, nocivos. Depende de quem mestra, depende de quem narra. Cenários são a manifestação da imaginação fantasiosa de um autor.

Apenas pare, e pense, e escute, e guarde para você críticas que não possa fundamentar. Eu tenho cenários que eu não gosto, por N motivos pessoais. Alguns pelas minhas próprias neuras. E nunca coloquei a culpa no autor ou no cenário. Se eu não gosto do cenário e não me vejo confortável para jogar nele a culpa é minha, porque o gosto é pessoal. Mas a crítica geralmente é pública, e ela pode gerar desconfortos e injustiças.