domingo, 27 de setembro de 2015

[Opinião] O RPG, a família e os filhos

Em 2008 eu escrevi um artigo chamado "Procura-se namorada RPGista", onde abordava um tema muito atual até hoje, o assédio que jogadoras acabam recebendo em mesa, e os relacionamentos entre casais jogadores. O tempo passou, namoradas viraram esposas, jogadores constituíram famílias, muitos tem filhos. Infelizmente, vejo que muitos pararam de jogar. Nesse artigo eu tento desmistificar a ideia de que pessoas tem de deixar a diversão de lado para se dedicarem completamente às suas famílias, mostrando que é possível e saudável transformar o jogo de RPG numa atividade com amigos, sem deixar a família na mão.





Quantas vezes você já usou uma das desculpas da imagem acima para deixar de se divertir? Deixar de sair com amigos, deixar de jogar RPG, deixar de fazer alguma atividade que te traga alegria e satisfação? O "não posso" é uma desculpa cômoda. Ela nos dá a sensação de responsabilidade para o que a sociedade considera importante, ela evita cobranças e falações, ela é um marco da condição adulta para aqueles à nossa volta. O "não posso" é um parasita. Ele gruda suas presas no cérebro das pessoas e começa a sugar toda a vitalidade delas, ao mesmo tempo que expele um sedativo que impede as pessoas de sentirem a dor da mordida, e uma substância que dá sensação de prazer toda vez que o seu nome é citado.

Quando fazemos uma busca no Google Acadêmico com os termos "importância" e "lazer", a ferramenta de busca retorna cerca de 145.000 resultados, apenas em português. Em inglês, "importance" e "recreation" reportam 948.000. É inegável que o ser humano precisa se divertir para manter a sua saúde e qualidade de vida, e que a falta de diversão afeta a sua família. Infelizmente, para muitas pessoas, a diversão em família é o único tipo de diversão que elas acabam tendo. Tenho de sair com a/o companheira/o. Tenho de sair com os filhos. Tenho de sair com o cachorro. E o que era para ser diversão, à medida que o segundo parasita, chamado "tenho", abocanha o coração das pessoas, passa a ser obrigação. O "tenho", diferente do "não posso", é um parasita chantageador. Ele aperta o coração o tempo todo, e só relaxa o abraço dele quando a pessoa faz o que acha que tem de fazer. O "tenho" dá uma falsa sensação de alívio para um sintoma que ele mesmo criou, fazendo a pessoa achar que o stress está sendo combatido toda vez que as tarefas obrigatórias segundo o tenho são realizadas.

Não posso e tenho deveriam ser palavras, mas se tornaram monstros, alimentados pela nossa sociedade e seu modo de vida. São esses dois parasitas que acabam fazendo a pessoa largar o RPG, largar todas as atividades feitas anteriormente apenas por prazer. O cara é capaz de peitar um dragão numa mesa de jogo, é capaz de encarar os maiores desafios, mas fica imóvel diante do "não posso" e do "tenho". É exatamente como naquele vídeo que diz que a depressão é um cachorro preto. E digo mais, elas são a ração ideal para o cachorro preto. São parasitas que te prendem à rotina.



Mas como conciliar? Não é possível deixar família e filhos na mão. Largar tudo e ir jogar RPG, largar tudo e ir se divertir genuinamente com os amigos, pode acabar penalizando a família, prejudicando as pessoas amadas. Aí que entra o bom senso, a conversa, a compreensão. O não posso e o tenho são patológicos. Um lar focado nesses dois conceitos é uma prisão, fadada à infelicidade de seus moradores. O "não posso" deve dar lugar ao "posso, e você também pode, nós podemos, vamos trabalhar isso e organizar nossas agendas". O "tenho" deve dar lugar ao "quero". Não é fácil, os parasitas podem estar com os dentes enfiados tão fundo no cérebro e no coração que a maioria vai dizer "não dá". Não dá é o filhote do cachorro preto do vídeo.

Eu não tenho filhos, não sou casada, e alguns de vocês, sufocados pelo "não posso" e pelo "tenho", tenderão a me criticar justamente porque eu "não tenho". Mas eu tenho a experiência pela observação, de alguém que já olhou de fora e viu muitos exemplos, sem estar presa pelo "não posso" e pelo "tenho". Já vi pessoas largando o jogo, largando seus amigos, e todo o seu lazer, e entrando em um estado de existência muito triste dominado pelo "não posso" e pelo "tenho". E já vi, felizmente, pessoas que mesmo com seus filhos continuam a se divertir genuinamente. E não tenho medo de dizer que esses lares, essas famílias, são as mais felizes e emocionalmente equilibradas.

Muita gente reclama que "não pode" mais jogar porque o grupo não aceita interrupção de crianças. Para esses grupos, eu só tenho a dizer "cresçam e deixem de ser mimados e egoístas". Jogar com a interrupção de uma criança chorando, pedindo colo e atenção, com o pai ou mãe tendo de parar para alimentar ou trocar fralda. é diferente de jogar isolado e imerso o tempo todo no jogo sim, mas não há motivo para considerar uma experiência inferior. Pelo contrário, essa é uma experiência que valoriza o tempo de jogo, que valoriza o encontro, o contato, a parte social do jogo de RPG. Em meu grupo de jogo tem um pai que mais ou menos na metade das vezes leva o bebê, ou vamos jogar na casa dele. (É só o começo. Acho que no futuro teremos uma creche...) Muitos jogadores homens deixariam o filho com a mãe, mas a mãe também tem o direito de se divertir, não é mesmo? E de jogar RPG. As jogadoras que se tornam mães são as que mais frequentemente abandonam o jogo, porque pensam que não poderiam deixar o filho com o pai para ir se divertir. Encarar de frente é trocar o "não posso" pelo "nós podemos", e o "tenho" pelo "quero". É sair da situação cômoda e batalhar pela sua felicidade.

Aos jogadores que são mães e pais ou ambos, eu aconselho a procurar um grupo que aceite que as pessoas crescem e assumem vidas compartilhadas. Não deixar a pessoa levar o filho para a sessão de jogo porque vai atrapalhar é mesquinho, egoísta e infantil. Se a pessoa não consegue entender o amor que você tem pela sua criança, é porque é capaz de entender amor ao próximo e felicidade, e em última instância, não entende porque jogamos RPG.

É possível jogar RPG, ser épico, viver a fantasia, enfim, combater o stress com essa atividade recreativa verdadeiramente prazerosa, e ainda assim estar plenamente alinhado à sua família e responsabilidades, se você não confundir responsabilidade com "não posso" e "tenho". Só tome cuidado para não deixar o "tenho" dominar o RPG, ou outra atividade de lazer.

É uma linha tênue. Se ao mesmo tempo é necessário ter compromisso, comprometimento e força para manter o jogo de RPG (ou outra atividade lúdica com amigos), para conseguir ter o seu benefício de combate ao stress, é necessário ter o discernimento para que esse jogo não se torne um fardo. Viver a fantasia durante o jogo faz um bem danado, mas você deve verificar se está sendo capaz de viver a fantasia enquanto joga, com ou sem uma criança no colo. Se não está acontecendo, você não se livrou do "tenho".

Quando eu deixei de fazer terapia, a última recomendação da minha psicóloga foi: "nunca pare de jogar RPG, pois isso te faz um bem danado". Essa é a mensagem que deixo para todos que estão lendo esse artigo: nunca deixem de jogar.

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